quarta-feira, 5 de novembro de 2008

CARTA – Carlos Drummond de Andrade - Ainda sobre silêncio...

Bem quisera escrevê-la com palavras sabidas, as mesmas, triviais, embora estremecessem a um toque de paixão. Perfurando os obscuros canais de argila e sombra, ela iria contando que vou bem, e amo sempre e amo cada vez mais a essa minha maneira torcida e reticente, e espero uma resposta, mas que não tarde; e peço um objeto minúsculo só para dar prazer a quem pode ofertá-lo; diria ela do tempo que faz do nosso lado; as chuvas já secaram,as crianças estudam,uma última invenção(inda não é perfeita) faz ler nos corações, mas todos esperamos rever-nos bem depressa. Muito depressa, não. Vai-se tornando o tempo estranhamente longo à medida que encurta. O que ontem disparava, desbordado alazão, hoje se paralisa em esfinge de mármore, e até o sono, o sono que era grato e era absurdo é um dormir acordado numa planície grave. Rápido é o sonho, apenas, que se vai, de mandar notícias amorosas quando não há amor a dar ou receber; quando só há lembrança, ainda menos, pó, menos ainda, nada, nada de nada em tudo, em mim mais do que em tudo, e não vale acordar quão acaso repousa na colina sem árvores.

Contudo, esta é uma carta.


(Antologia Poética. 26ª. ed.Rio de Janeiro: Record, 1991, p.74-6)

Um comentário:

zemaurojr disse...

Ler Drummond dá sempre uma inveja ou um sentimento de que poderíamos ter escrito aquelas palavras... tão simples e tão profundo. http://blogdoantiquado.blogspot.com.br/2012/04/minha-querida.html